Table of figures

O ar gelado matinal esbarrou-lhe na cara e o homem apertou o casaco preto e largueirão. O casaco cobre-o do queixo até um pouco acima dos joelhos. A porta pesada e lenta acelera no final para fechar com estrondo. Ainda nem são 9h e já não sente os pés. Prefere não os sentir, a sentir as dores. Dá 3 passos e fica ali ao pé da porta. Leva o cigarro à boca e puxa o fumo demoradamente. Volta a entrelaçar o cigarro nos dedos magros e rosados e contém o fumo mais um pouco. Abre os olhos e deixa o fumo sair. Tira o telemóvel do bolso e põe-se a jogar Tetris. Já está num nível em que tem de pensar bem onde pôr as peças ao início e gosta desse desafio. Vai fumando com uma mão e jogando com a outra. “Sim, aquela peça encaixou bem no canto”. O vento levanta-se de vez em quando e ele enfia mais e mais a cara dentro da gola. Continua a mover aquelas peças no ecrã. Grunhe sem fazer sentido, quando vê que já tem o jogo por perdido. Continua a empilhar as peças, mas vê que vai perder em poucas jogadas. ‘Merda’, diz em voz alta. Puxa uma última vez até ter a certeza que fumou o tabaco todo. Esfarela a ponta do cigarro para o apagar e põe no cinzeiro. Afunda as mãos nos bolsos e a cara na gola durante uns segundos. Dá um safanão a si mesmo e todo o seu corpo estremece. A pausa terminou.
Entra na fábrica e toma o passo rápido, embora tenha botas de biqueira d’aço. Ultrapassa uma empilhadora e lá dentro vê um homem com dificuldades em acertar com as pás numa rack. Continua no passo rápido por corredores estreitos serpenteantes no meio de vedações altas de metal. Já quase consegue saber quais os problemas pelo som rítmico do metal a ser contorcido, soldado, prensado. Vê um rapaz do lado de dentro da vedação. Não se diria que tem mais de 18 anos e o pólo preto fica-lhe largo nos ombros. Tem uma consola no colo e a cabeça afundada nela – um roboteiro. ‘Oh companheiro, esse robot atrasou a produção toda ontem e tenho os alemães em cima de mim’, diz o homem rispidamente. O rapaz levanta a cabeça da consola e olha-o nervoso. ‘Raposa. Eu já falei com o Miranda, este robot não consegue fixar nos pontos, eu não sei, eu estou a ver, Raposa’. ‘Companheiro, isso tem de estar feito agora de manhã, senão és tu que vais levar com ele dos alemães’. E assim dito, sem perder tempo voltou ao seu caminho serpenteante. Antes de chegar à sua secretária ainda dá umas ‘piçadas’ em mais uns quantos colegas, por vezes disfarçando a irritação com um sorriso manhoso.
Tem a secretária cheia de papéis e de pequenos pedaços de alumínio. Põe-se ao computador e procura por um layout da linha. A sua caixa de correio voltou a explodir com emails desde a última vez que a viu. No reflexo das lentes dos seus óculos, a caixa de correio é puxada para cima e para baixo, enquanto procura algum que seja mais urgente que todos os outros. “Que quer este agora…”, pensa ele quando vê o email de um alemão. No email, o alemão pôs em conhecimento todos os chefes de Raposa e desata a queixar-se do material que ainda não chegou à fábrica e a data de entrega cada vez mais próxima. Alerta para a produção parada no dia anterior e para as consequências que isso teve para a sua empresa. Nos muitos anos de Raposa a trabalhar na indústria automóvel, conseguia sempre identificar uma certa personagem. O justiceiro das teclas. Este alemão em particular ainda poucas vezes tinha sido visto por Raposa na fábrica, mas eram dele que vinham os emails a avisar todos os chefes para todos os problemas. “Ainda por cima escreves em alemão”, pensou Raposa. Começou a escrever a sua resposta que traduziu para alemão no Google. «Caro Schmidt, ainda não te vi aqui na fábrica e continuo a precisar que fales com a TUA empresa para movermos os armários. Como sei que NÃO irás ler este email e só quiseste sentir-te importante durante uma manhã, posso dizer-te que és um cabrão de merda». Levou o rato para o botão de enviar. Suspirou e guardou na pasta ‘Melhor não’.
Raposa é um homem com quase 50 anos, mas o seu corpo já parece ter vivido várias vidas. O seu cabelo é fino e ralo. Curva-se bastante sobre o ecrã do portátil e vai deixando os óculos deslizarem até à ponta do nariz para prontamente os levar acima. Franze a testa e abre um pouco a boca quando está a ler. De vez em quando massaja a nádega com a mão o melhor que consegue estando sentado. Levanta-se e puxa as calças para cima, como se fossem um saco de batatas. Agarra num monte de dossiers deixado ali na secretária. Sai disparado com passadas longas e rápidas. O seu cabelo ralo esvoaça na sua passada, até que pára repentinamente.
‘Essa merda é assim, oh caralho?’, quase grita Raposa para um homem entroncado que está de joelhos a puxar um cabo.
‘Senhor Raposa. Bons olhos o vejam. Então diga lá como se faz isto’.
‘Foda-se não é assim! Tás a puxar isso assim vais partir o cabo todo’.
‘Lá está o senhor Raposa. O cabo já foi todo passado e já estou no fim. O cabo está bom’.
‘Foda-se Paulo, tás a estragar o cabo todo! Da próxima vez chama-me. Caralho pah, era o teu chefe que aqui devia estar a ver isto, não era eu’.
‘O cabo está bom’.
‘Tu sabes lá também! Aquela merda que fizeste lá em cima ainda está por resolver. Ficou um bonito serviço, sem dúvida. Agora quem vai resolver aquela merda? Tenho o robot já no sítio, mas sem o poder alimentar!’.
‘Tivessem encomendado mais peças. As obras não se fazem às mijinhas’.
‘Foda-se, contigo não!’
Raposa retoma o passo rápido. À medida que serpenteia aqueles corredores de vedações, vê os seus colegas e pensa instantaneamente se terá algo a dizer-lhes ou não. “Não tenho tempo para isto”, pensa Raposa. Carrega os dossiers numa mão e tem a outra no bolso. Estes são os momentos em que melhor pensa nos problemas, quando cruza a instalação a uma velocidade que ninguém consegue acompanhar, especialmente com botas de segurança. Chega a um armário eléctrico semi-aberto. É mais alto que um homem e talvez tenha a largura do mesmo homem com os braços abertos. Põe um pé na base do armário e entra com o corpo esguio. Põe-se em bicos de pés para tirar umas folhas que estão na parte superior do armário. Afasta-se para folhear as páginas que tirou.
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Naquela manhã de inverno, o frio dentro da fábrica é quase tanto como lá fora e nenhum trabalhador despe o casaco. Uma corrente de ar gelada entra na fábrica com o abrir dos portões de carga, sempre que uma empilhadora passa para ir buscar material. Alguns desafortunados têm de estar perto destes portões e protegem-se com gorros, cachecóis e luvas, deixando uma mão descoberta para mexerem no rato ou no teclado quando controlam um robot. Por vezes vê-se um alemão nestas partes da fábrica, com a sua bicicleta, mas até eles não se atrevem muito a isso hoje.
“Nestas fábricas automóveis, ter uma bicicleta é um símbolo de status. Se fores importante, poderás pedalar a distância da fábrica de uma ponta à outra – talvez 1 km, mais por não ser em linha recta. Senão, andarás isso tudo, carregando o equipamento com o corpo”, escreve Atahualpa num email para a sua família. Detesta este símbolo de status. “Gordos dos alemães não podem andar”, pensa ele quando vê um. Por vezes dá consigo a querer que uma empilhadora ande distraída e colha um ciclista pomposo. Isso nunca aconteceu.
Nos últimos dias, a cabine de fumo foi ficando mais frequentada pelos portugueses. Vinham depois de almoço e viam que lá estava um colega e então deixavam-se ficar na conversa. Um dia, Raposa foi dar com toda a sua equipa na cabine. Já eram tantos que não podiam estar todos lá dentro. Alguns estavam encostados do lado de fora e quando queriam largar o fumo, punham a cabeça dentro da cabine. Lá dentro, uma grande mancha cinzenta não deixava ver bem a cara das pessoas. Falavam sobre aquele tempo de merda e sobre o trabalho que ainda tinham para fazer. Alguns eléctricos punham-se a discutir os problemas da instalação com os roboteiros e invariavelmente ambos chegavam à conclusão que ora a culpa era do outro, ora de todos. Raposa chegou à cabine com um sorriso e meteu-se na conversa sobre os problemas da instalação.



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